sexta-feira, 1 de outubro de 2010

LEITURAS: Os cínicos não servem para este ofício

Os cínicos não servem para este ofício. Conversas sobre o bom jornalismo (Lisboa: Relógio d’Água, 2008) reúne diálogos do repórter polaco Ryszard Kapuscinski com vários interlocutores. A finalidade do jornalismo e as traições de que é objecto ou o estado do mundo são temas que suscitam uma atenta reflexão

Ryszard Kapuscinski


Há centenas de formas de manipular notícias na imprensa. E outras centenas na rádio e na televisão. E sem dizer mentiras. O problema da rádio e da televisão é que não é necessário mentir: podem limitar-se a não reflectir a verdade. O sistema é muito simples: omitir o assunto. A maior parte dos espectadores da televisão recebem de modo muito passivo o que lhes é dado. Os patrões das cadeias televisivas decidem por eles o que devem pensar. Determinam a lista de coisas em que se deve pensar e o que se deve pensar sobre elas. Não podemos estar à espera de que o telespectador médio realize estudos independentes sobre a situação do mundo, seria impossível, inclusive para os especialistas. O homem médio, que trabalha, regressa a casa cansado e quer simplesmente estar um pouco com a família, só recebe o que chega até ele naqueles cinco minutos de telejornal. Os assuntos principais que dão vida às “notícias do dia” decidem o que pensamos e o modo como o pensamos.
Trata-se de uma arma fundamental na construção da opinião pública. Se não falarmos de um acontecimento, este simplesmente não existe. Com efeito, para a maior parte das pessoas, “as notícias do dia” são a única forma de conhecer alguma coisa do mundo. Testemunhei pessoalmente essa situação em Moscovo, em 1991, aquando da tentativa de derrubar o primeiro governo de Boris Ieltsin e de restaurar o comunismo. O acontecimento principal, que determinou tudo, ocorreu em Leninegrado, actual São Petersburgo. No entanto, as equipas televisivas estavam todas em Moscovo.
O problema das televisões e dos meios de comunicação em geral é que são tão grandes, influentes e importantes que começaram a criar um mundo só deles. Um mundo que tem muito pouco a ver com a realidade. De resto, esses meios de comunicação não estão interessados em reflectir a realidade do mundo, mas em competir entre si. Uma estação televisiva, ou um jornal, não pode permitir-se não ter a notícia que o seu concorrente directo tem. De modo que acabam por observar os seus concorrentes em vez de observar a vida real.

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