domingo, 21 de novembro de 2010

LEITURAS: A televisão e a escola

Neste domingo em que, por decisão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, se assinala o Dia Mundial da Televisão, vale a pena ler um extracto de Televisão, família e escola (Lisboa: Editorial Presença, 2002), um livro da autoria de Manuel Pinto. A obra conjuga uma inteligente reflexão sobre a televisão com úteis propostas de trabalho educativo, razão por que se recomenda a sua leitura integral.

Uma das ideias fortes que acompanha a televisão desde os seus começos é a de que ela existe para realizar uma tríplice missão: “informar, divertir e educar”. A experiência das últimas décadas tem levado muitos a concluir que a TV rapidamente abdicou de educar, que cada vez informa menos e que o que faz de facto é divertir, se não alienar, as pessoas. Já lhe chamaram o novo “ópio do povo”.
Todavia, quando se lamenta que a televisão abdica de educar, pretende-se sobretudo dizer que o que ela faz é deseducar. Porque, como disse um dia um membro da Comissão Federal das Comunicações dos Estados Unidos, “toda a programação televisiva é educativa; o problema é aquilo que nela se ensina” (Hodge e Tripp). Em certo sentido, todos os ambientes, sejam eles físicos ou simbólicos, contribuem para a formação das pessoas, em especial dos mais pequenos. As preocupações em torno da TV (como já antes em torno do cinema e da rádio) explicitam o receio de que uma instituição com o peso que a TV possui possa remar contra a maré, difundindo valores, mundividências e comportamentos que violentam o sentir geral.
O problema, contudo, não é nada simples, como vamos procurar mostrar.
Há dois pontos prévios que inquinam, por assim dizer, toda a reflexão que se possa fazer sobre a relação entre os meios de comunicação, particularmente a TV, e a escola.
O primeiro refere-se a um projecto educativo-cultural que algumas elites político-educacionais quiseram confiar à TV. Perante a necessidade de difundir e massificar o acesso à escolaridade e de modernizar a aprendizagem, a televisão seria (ou deveria ser) “a grande educadora” da população. Através de programas didácticos, de documentários, de cursos de formação e através da telescola, o novo meio de comunicação converter-se-ia num excelente e inultrapassável meio de instrução. [...]
O segundo ponto surge aparentemente como contraditório ou conflituante com o anterior e diz respeito à dificuldade dos meios educativos em lidar com o mundo da imagem. O que fez (e continua, de algum modo, a fazer) com que as atitudes predominantes entre os professores e pedagogos relativamente à TV tenham sido de incomodidade, de desconfiança e até de resistência.
Sabemos, dos estudos históricos, como o mundo da imaginação e da representação através da imagem sempre suscitou problemas, na cultura ocidental. Se isso se verificou com a imagem fixa, como não haveria de se verificar, por maioria de razão, com as imagens animadas? A magia da imagem; a ideia de transparência; a emoção e o interesse que suscita; os caminhos incontroláveis que abre – eis aspectos com que a lógica escolar lida mal.
Os docentes tendem a ver a televisão – esse poderoso e incansável “moinho de imagens” – como uma ameaça para a aprendizagem escolar. Ameaça, desde logo, pelo tempo que ocupa no dia a dia dos alunos e que os impediria de dedicar-se o necessário aos deveres escolares, à leitura, ao sono, a outras actividades. Ameaça, também, à capacidade de concentração e de atenção. Ameaça, enfim, à disponibilidade para os requisitos que são considerados necessários à aprendizagem: o esforço, a repetição, a progressão, a avaliação. Na televisão, tudo é fácil e atraente, tudo gratifica, tudo sugere que se pode aprender sem custo: basta estar lá e consumir ainda mais. (Deve assinalar-se, porém, que os tópicos destas preocupações se referem mais ao uso que é feito da televisão do que ao meio televisivo propriamente dito.)
Nos anos mais recentes, à suspeita e até o anátema lançado por muitos professores contra a televisão e os malefícios que lhe são atribuídos tem correspondido a própria TV que, através de alguns programas, não perde oportunidade de ridicularizar a instituição escolar e, nomeadamente certos modos de exercício do papel de professor. De modo que o desejo manifestado por alguns autores nos anos 60 a 80 do séc. XX, no sentido de romper com o fosso que separa a educação da televisão, em lugar de se ter esvaziado, tem vindo a adquirir uma relevância e pertinência ainda maiores. Com a crescente comercialização da programação televisiva e a subalternização ou extermínio dos programas que não captam audiência (e dinheiro), as preocupações educativas e culturais pura e simplesmente desaparecem das agendas dos programadores ou são recambiadas para horários impraticáveis para a esmagadora maioria dos cidadãos.
E pur se muove!”. E no entanto a terra continua a girar. Isto é: a televisão assume cada vez mais pujança (mais em número de portas de acesso do que em diversidade de programas) e a escola continua com o insubstituível e cada vez mais premente desafio de acolher a vida das gerações mais novas e de lhes abrir um horizonte de sentido individual e colectivo para o futuro. Mais ainda: bem ou mal, certo é que as crianças nascem e crescem hoje num “ecossistema” do qual a televisão e outros media fazem parte integrante e do qual são referência central, que não pode, sob graves riscos, ser iludida.
Numerosos estudos comprovam que só excepcional ou pontualmente a televisão transpõe as portas da sala de aula. Aquilo que se vê no pequeno ecrã é entendido pelos alunos como algo que não tem cabimento na escola, que não é pertinente nem relevante para os fins da escola. E no entanto esses conteúdos constituem uma experiência que, do ponto de vista do todo que é a vida de uma criança (ou de um adulto), é tão relevante como a da escola, pelo que é no mínimo insensato não a assumir e a tomar como assunto a trabalhar.
De modo que, em lugar de ter decrescido, se tornou ainda mais necessário e urgente equacionar os modos de articular os mundos da educação e os mundos da televisão.
São três as frentes que há que considerar e em que é possível intervir:
- a dimensão educativa da televisão;
- o tratamento da educação na televisão;
- a educação para um uso crítico e inteligente da televisão.
Todas e cada uma destas frentes pressupõem a participação activa e esclarecida dos cidadãos e uma sociedade civil interveniente e a assunção pelos órgãos de decisão política das respectivas responsabilidades. No entanto, as duas primeiras dependem em grande medida das opções e iniciativa dos próprios operadores televisivos, ao passo que a terceira depende das instâncias com responsabilidades e intervenção no campo educacional. (...)

A dimensão educativa da televisão

Ainda que muitos adultos considerem que com a televisão não se aprende nada e, o que é pior, ainda se desaprende, tal não pode passar sem ser submetido a uma análise crítica.
Bastará interrogar uma criança para perceber como, ao contrário de tais adultos, ela considera que aprende enormemente com o que vê na televisão.
Muito daquilo que a escola considera ser um currículo informal (não expressamente programado) provém da experiência televisiva que os alunos trazem de casa e que compreende noções sobre mundos e realidades diferentes daqueles com que elas directamente contactam: outros povos e costumes, modos de vestir e de comunicar, tecnologias e modas. Num estudo que eu próprio realizei com algumas centenas de crianças portuguesas, pude verificar que três em cada quatro consideravam aprender com a TV, colocando nos primeiros lugares matérias apresentadas no programa Rua Sésamo, línguas estrangeiras, conhecimentos úteis para o dia a dia e informações sobre o que se passa no mundo (Pinto). (...)
Como se viu já, há programas que se assumem expressamente como educativos e que, em alguns casos, pelo menos, não abdicam de ser interessantes. Rua Sésamo foi um deles e seguiu-se-lhe o Jardim da Celeste. Toda uma geração de crianças foi marcada pelas várias séries destes dois programas, cuidadosamente planeados e produzidos pela RTP, através de uma equipa cuja orientadora pedagógica foi uma conhecida especialista da matéria, a Dr.ª Maria Emília Brederode Santos (cf. o seu trabalho de 1991 e ainda o de Cristina Ponte). Mas há mais programas, e não só na RTP, incluídos ou não na programação para a infância, que foram elaborados com claras preocupações pedagógicas e culturais.

Educação para um uso crítico e inteligente da TV

Cientes de que muito do que é a relação entre as crianças (e os adultos) e a televisão também depende da acção dos telespectadores, numerosas instituições, alguns governos e várias organizações internacionais têm vindo a apostar na vertente da formação para um uso crítico e inteligente da TV.
Duas ideias básicas estão subjacentes a tais iniciativas: nenhuma dimensão relevante da vida dos aprendizes deve ser deixada de lado no processo de aprendizagem; e há aspectos do universo mediático e televisivo cujo domínio é de grande alcance potencial para a compreensão do mundo e para o exercício da cidadania.
Nas décadas que este tipo de acção leva de existência, têm sido vários e nem sempre convergentes ou complementares os objectivos perseguidos:
Há quem pretenda realizar este tipo de projectos, em especial no campo da educação escolar, para proteger os mais novos dos potenciais malefícios da televisão ou de certo tipo de conteúdos em particular.
Há quem o faça para ajudar os alunos a distinguir o que é bom do que é mau, na base de padrões de gosto ou de normas morais previamente estabelecidos.
Há quem procure colocar os alunos diante dos problemas suscitados pela televisão e ajudá-los a encontrar para eles soluções ou respostas que pareçam satisfatórias e fundamentadas.
Há quem vise, com projectos de abordagem da televisão na escola, desocultar os interesses e estratégias que a indústria televisiva movimenta e as ideologias, os estereótipos e os valores que informam determinado tipo de programas.
Há quem foque a televisão e, em especial alguns dos seus géneros mais salientes, para contrapor o vazio estético ou o mau gosto à estética cinematográfica, tomada como realidade universal e como referência artística no campo audiovisual.
Há, enfim, quem valorize, na abordagem do universo televisivo, as dimensões expressivas e comunicativas, procurando suscitar entre os alunos actividades que os levem a viver experiencialmente desafios do campo estudado.
A variedade de orientações possíveis é, pois significativa. Quanto às modalidades de abordagem, elas são igualmente variadas. Em todo o caso, a experiência própria e de outros estudiosos e docentes, levam-me a sugerir três dimensões: a) a televisão como recurso pedagógico-didáctico; b) a televisão como tema de estudo; c) a televisão como campo e pretexto de expressão e comunicação.

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